A eficácia simbólica e o fazer do analista

Em torno da questão do avesso do inconsciente, proposta de estudo inicial de nosso cartel, surgiram importantes discussões teóricas em nossos encontros, tais como o fazer do analista, tema esse que proponho enfocar aqui devido a sua importância clínica. Com o intuito de colaborar com esta, e as demais discussões ocorridas nas nossas reuniões, achamos importante recorrer a textos que possivelmente as abordassem, incluindo-se aí Eficácia Simbólica de Levi Strauss. Neste escrito o antropólogo francês aborda a tribo panamenha Cuna e o seu ritual xamânico, cuja função é facilitar um trabalho de parto. [1]. Neste contexto o autor aponta que o ritual consiste em um canto, que utilizando-se de recursos simbólicos, descreve o real do difícil parto como causado pela posse espiritual da alma materna, que seria reconquistada mediante uma “luta dramática entre espíritos prestativos e espíritos malfazejos” [2].Após a apresentação do funcionamento do ritual, bem como de seu sucesso em possibilitar o nascimento da criança, o antropólogo ao longo do texto passa lançar uma hipótese para a eficácia desse processo. No decorrer da leitura, explica que o fato do xamã interpretar a situação através de uma mitologia na qual sua paciente crê, acaba por fornecer uma linguagem capaz de transformar as dores estranhas, incoerentes e arbitrárias em algo que se insere em um sistema conhecido, no qual todo os elementos se encaixam, promovendo assim o desbloqueio do processo fisiológico [3]. A partir dessa hipótese o autor estipula uma proximidade entre o método de tratamento xamânico e o método de tratamento psicanalítico, na medida em que ambos propõe-se através da reconstituição de um mito “trazer à consciência conflitos e resistências que até então haviam permanecido inconscientes”, seja por terem sido recalcados, ou como no caso do parto, por serem de natureza não psíquica e sim orgânica[4]. Ainda neste comparativo, afirma que em ambos os processos terapêuticos provoca-se “uma experiência específica, na qual os conflitos se realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenrolar e conduzem ao seu desenlace”[5]. Apesar do autor apontar para as semelhanças entre a cura xamânica e a psicanalítica, também salienta que na comparação entre os dois métodos, verifica-se uma inversão de todos os termos, na medida em que no primeiro tratamento há um oferecimento de um mito social ao paciente por parte do xamã, enquanto que no segundo é o próprio paciente quem constrói um mito individual a parir dos elementos tirados de seu passado[6]. Tendo em vista o paralelo estabelecido entre o xamanismo e a psicanálise, Levi Strauss conclui o texto propondo que o confronto entre ambos os métodos de tratamento pode promover um aprofundamento das bases teóricas da psicanálise e alargar a compreensão dos mecanismos de sua eficácia[7]. Levando em conta a proposta de confrontação possivelmente frutífera entre os dois tipos de tratamento, torna-se interessante trazer à tona elementos contidos na literatura psicanalítica e relacioná-los com os elementos contidos no escrito do antropólogo francês, afim de pensar a prática do analista. Quanto a reconstituição de um mito, que na visão de Levi Strauss seria o método pelo qual o xamanismo e a psicanálise operariam e encontrariam sua eficácia, em Perspectivas dos Escritos e Outros escritos Miller traz contribuições que podem se articular a esta ideia, na medida em que afirma que a operação analítica “procede pela constituição de uma história”, sendo esse discurso o que “permite dar sentido às contingências e ordená-las em função do futuro”[8]. Apesar de Miller apontar para a ideia da construção de uma história durante a análise, há elementos presentes em O osso de uma análise que parecem tornar a discussão mais complexa, na medida em que nesse texto o autor aponta para duas operações que ocorreriam ao longo do processo analítico: a amplificação significante e a operação-redução[9]. Quanto ao que concerne à amplificação significante, o autor aponta que esta se daria na medida em que tudo o que é falado pelo analisante é suscetível de ter seu significado interrogado, e na medida em que a própria fala busca explicar seu significado, esta é obrigada a prosseguir sem cessar, complicando-se e torcendo-se sobre si própria[10]. Ao contrário da complicação presente na amplificação significante, Miller define a operação-redução como uma condensação, tal como o chiste, do material trazido pelo analisante em sua fala, processo este que desembocaria na cura analítica[11]. Ao meu ver, diante destes elementos trazidos em O osso de uma análise algumas questões se colocam na tentativa de articulá-los com o texto de Levi Strauss. Primeiramente assumindo uma homologia entre a amplificação significante e a construção mítica do analisante, haveria uma oposição desta construção em relação a proposta de cura via operação-redução? Em caso afirmativo, não é mais a eficácia simbólica que está envolvida no fazer do analista visando a cura? Voltando a descrição da operação redução Miller aponta que a palavra redução também é aplicada em lógica matemática e serviria para reduzir o tamanho das formulas, possibilitando assim calcular mais facilmente seu valor de verdade[12]. Levando-se em conta este último ponto, seria na direção contrária a articulação do saber inconsciente, ou seja, no isolamento dos S1 do sujeito e através da possibilidade de calcular seu valor de verdade que residiria a eficácia do tratamento analítico, resta saber se neste processo é de uma eficácia simbólica que se trata.

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(1) STRAUSS, C.-L. A eficácia simbólica. In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p. 201.

(2) Ibid, p. 207

(3) Ibid, p. 213              

(4) Ibid, p. 214              

(5) Ibid, p. 214

(6) Ibid, p. 215              

(7) Ibid, p. 220              

(8) MILLER, J.-A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan. Entre desejo e gozo. RJ: Zahar, 2011, p. 122.

(9) MILLER, J.-A. O osso de uma análise + o inconsciente e o corpo falante. RJ: Zahar, 2015, p. 40.

(10) Ibid, p. 41

(11) Ibid, p. 45              

(12) Ibid, p. 45