O sujeito dividido e a prática analítica
(Texto apresentado nas Jornadas da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção São Paulo 2022)
No texto A ciência e a verdade Lacan descreve que houve uma “mutação decisiva” que contribuiu para o advento da ciência moderna, esta mutação segundo o autor foi uma modificação da concepção de sujeito da ciência que a partir do cogito cartesiano ganha novos contornos [1]. Dentro desta nova concepção, o sujeito da ciência passa a ter “um ancoramento no ser” e há um “rechaço de todo saber que o defina”[2]. Utilizando-se desta ideia, Lacan então traça um paralelo entre o sujeito da ciência e o sujeito da psicanálise, definindo este último como dividido “entre o saber e a verdade” [3]. Quanto a esta noção de divisão ou “fenda” que caracteriza o sujeito psicanalítico, o autor aponta que não basta que ela seja constatada como um “fato empírico”, mas deve passar por uma redução epistemológica para que o analista “saiba o que acontece com sua práxis”[4]. A partir da importância teórica conferida por Lacan a divisão subjetiva, torna-se interessante abordar os conceitos de saber e verdade envolvidos nesta questão, bem como a implicação desta conceitualização para a prática analítica. Quanto ao saber e a verdade, é possível apreender uma relação de fracasso que liga ambos os conceitos. No Seminário 15, o ato psicanalítico, Lacan aponta que o saber “faz falha […] e são precisamente esses pontos que, para nós, estão em questão, sob o nome de verdade” [5] . No Seminário 17, o avesso da psicanálise, esta relação fracassada também é apresentada, no entanto relacionada a questão do gozo. Neste momento do ensino, o saber é definido como articulação entre significantes, que por um lado é “meio de gozo” e por outro tem como efeito “uma perda de gozo”, associada a produção do objeto a no discurso do mestre [6]. Ainda dentro deste contexto a verdade é definida como irmã do gozo, na medida em que, como aponta J.-A. Miller, a verdade, assim como o gozo, é inseparável dos efeitos de linguagem[7]. Neste seminário a linguagem é constantemente articulada a questão da verdade, na medida em que Lacan indica a impossibilidade da verdade ser inteiramente dita. Além das questões relativas ao saber e a verdade, neste mesmo seminário em que apresenta seus quatro discursos, Lacan faz importantes apontamentos relativos à intervenção analítica, mais especificamente a posição do analista e a interpretação. Com relação a posição do analista, aproveitando-se do matema do discurso do analista, propõe que a posição do psicanalista, “é feita substancialmente do objeto a”[8]. Com relação a essa proposta, diz que “o próprio analista tem que representar aqui, de algum modo, o efeito de rechaço do discurso” e afirma que “lá onde estava o mais-de-gozar do outro” o analista, na medida em que profere o ato analítico, deve advir[9]. No que diz respeito a interpretação, levando em conta a impossibilidade de dizer integralmente a verdade, propõe que esta deve ser formulada como um “semi-dizer” estruturada como “um saber como verdade” [10]. Neste sentido são apresentadas duas modalidades de interpretação, o enigma como “enunciação sem enunciado” e a citação “como enunciado com reserva de enunciação”[11]. Quanto a estrutura da interpretação apresentada neste seminário, J.-A. Miller em A interpretação pelo avesso, traz importantes contribuições que podem elucidá-la, neste texto afirma que o próprio inconsciente interpreta e que a interpretação analítica se “apoia na interpretação do inconsciente” [12]. Apoiando-se nesta ideia, afirma que ninguém é capaz de “citar, fazer enigma, meio-dizer” melhor do que o próprio inconsciente [13]. Capacidade esta corroborada em Perspectivas dos escritos e outros escritos, texto no qual é pontuado que as formações do inconsciente são “emergências de verdade” [14]. Neste sentido, relembrando que a verdade assim como o gozo é inseparável dos efeitos de linguagem, pode-se inferir que as formações do inconsciente também guardam relação com estes efeitos. Depreende-se destas observações algo em comum entre a posição do analista e a interpretação, na medida em que em ambos os casos se utiliza dos restos do discurso para operar, desta forma, articuladas a posição do analista e a interpretação, verdade e gozo parecem estreitar ainda mais os seus laços. Quanto a este estreitamento resta saber de que maneira estes dois campos podem ser articulados, uma vez que de um lado a verdade enquanto formações do inconsciente está ligada de maneira mais direta ao simbólico e, o gozo por outro lado está ligado de maneira mais direta ao real, que por definição não possui representação. Para solucionar este impasse, me parece que M-A-C Jorge em Fundamentos da Prática Analítica traz uma importante contribuição. Neste texto, o autor relembra a imagem do deus Janus da mitologia romana que deu origem ao mês de janeiro como conhecemos. Esta divindade segundo o autor, assim como o mês de janeiro que olha “tanto para trás, para o ano que se foi, como para a frente, para o ano que se anuncia”, possui duas faces voltadas para lados opostos. Utilizando-se desta imagem, o autor aponta para uma dimensão igualmente dupla do simbólico que por um lado tem uma “vertente signica” que “olha para o imaginário” e que por outro possui uma “vertente significante” que “olha para o real”[15]. A partir desta analogia, é possível pensar que o simbólico não apresenta de maneira direta o real do gozo irrepresentável, mas o olha e dá notícias de sua existência na medida em que diante da impossibilidade de representação utiliza-se do conjunto dos significantes para circunscrevê-lo. Diante disto, ao meu ver, é possível pensar que diante do esgotamento do recurso da combinatória significante para representar o real do gozo, há um apelo às formações do inconsciente, ou seja, recorre-se a um saber que inclui a própria falha em seu interior, em outras palavras, um saber que inclui a verdade.
_____________________________________________________________________________
(1) LACAN, J. Escritos. In: A Ciência e a verdade. RJ: Zahar, 1960, p. 869.
(2) Ibid, p. 870
(3) Ibid, p. 870
(4) Ibid, p. 869
(5) Lacan, J. O Seminário Livro XV: O ato psicanalítico. PE: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 1988, p. 56.
(6) Lacan, J. O Seminário Livro 17: O Avesso da Psicanálise. In: Saber, meio de Gozo. RJ: Zahar, 1969-70, p. 46
(7) MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. In: Opção lacaniana online. Ano 3, nº 7, 2012, p. 33.
(8) LACAN, J. O Seminário Livro 17: O Avesso da Psicanálise. In: Saber, meio de Gozo. RJ: Zahar, 1969-70, p. 40
(9) Ibid, p. 41
(10) Ibid, p. 34
(11) Ibid, p. 49
(12) MILLER, J.-A. A interpretação pelo avesso. In: Opção lacaniana nº 15, 1996, p. 96.
(13) Ibid, p. 96
(14) MILLER, J.-A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan. Entre desejo e gozo. RJ: Zahar, 2011, p. 119.
(15) Jorge, M. A. C. Fundamentos da Pratica Analítica. In: Inconsciente e Linguagem: o Simbólico. RJ: Zahar, 2008, p. 99.